« Em toda ação, em toda escolha, é a felicidade o termo que temos como objetivo e é para atingi-la que todo resto está sendo cumprido. Termo em si mesmo cravado, margem perfeita, pois a felicidade não é nem instrumento nem meio, mas fim apenas, e, por isso mesmo, fim absoluto, entre todos o mais desejável, o único capaz de apaziguar, de aquietar o desejo. Sem a felicidade, não pararíamos, na verdade, de desejar, indefinidamente escolhendo tais metas, mas já tendo em vista outras através delas, sem satisfação, nem trégua, nem descanso, incessante busca do prazer nos afastando a cada passo do termo que é a felicidade mesmo.
A felicidade é desejável, altamente desejável, é mesmo o que a define. Mas o que é o desejo? O desejo é FALTA, todo desejo é de carência : “O que não temos, o que não somos, o que nos faz falta, tais são os objetos do desejo e do amor” (Platão).
Se o desejo é falta, sempre careço do que desejo (mas a falta É um sofrimento) e nunca desejo o que já tenho (pois o desejo É carência). Ora desejo o que não possuo, e estou sofrendo; ora tenho o que desde então não desejo mais…
Albertine presente, Albertine desaparecida ; como Proust entendia bem disso! Trata-se contudo da mesma mulher, mas uma não se pode amar, a outra não se pode esquecer. Desejamos o que não temos, deixamos então de desejar o que possuímos- e que voltaríamos a querer se for perdido um dia. Sofrimento da carência, indiferença da posse, abominação do luto…”Imagina madame Tristão”, sugeria Denis de Rougemont, e podemos muito bem adivinhar o que teria acontecido: a paixão de Isolda só alimenta-se da falta de Tristão e a felicidade por ela desejada, preenchendo essa carência, teria-se anulada, abolida enquanto tal nessa exata medida…
Será que têm outro caminho? Talvez, e é o que os filósofos chamam de “sabedoria”. Como concebe-la? Antes de mais nada, como oposta ao que antecede, ligada á existência de algo real, positivo, que nos incentiva a viver (na alegria ainda por cima…)
E o que todos nós já experimentamos e cujo nome é “prazer”, o qual é bem outra coisa do que a ausência de sofrimento. Comer quando estamos com fome (e mesmo, se a comida for deslumbrante, sem grande apetite…), beber quando estamos com sede (e mesmo – se a bebida for aquela água de coco ou uma garrafa de vinho daquela safra maravilhosa ou aquele whisky escocês envelhecido com carinho –sem grande e veemente impaciência…), fazer amor (mesmo sem amar com A maiúsculo…), rir, passear, ouvir música – todos estes prazeres, da plena, soberana PRESENÇA dos quais cada um pode desfrutar. Falta? Mas de que, pelos deuses, pois o prazer está aí? Sem dúvida nenhuma, não há também prazer sem desejo; no entanto, sem carência previa, o que é radicalmente diferente – e fundamental!
A música que me preenche não me fazia falta antes de ressoar(e muito menos enquanto a estou ouvindo), nem essa paisagem no outono, nem essa risada explodindo, nem essa mulher que me completa…É então preciso que o desejo não seja sempre e apenas uma carência. O que, então? Uma potência , e é o prazer justamente o ato dela. Não é a felicidade o ponto de partida, mas sim o prazer, prazer do corpo (o gozo), prazer da alma (a alegria) – tal é o pensamento de Spinoza, de Epicuro. Tudo gira entorno da relação dos dois com a carência. Trata-se, segundo esse último, de uma relação de EXCLUSÃO nos dois casos. Não na medida em que prazer e carência não poderiam coabitar: posso beber e ainda ter sede, comer e ainda ter fome, sentir ainda (oh loucura dos amantes!) a falta do ser amado no momento mesmo em que estou o possuindo…É o que Epicuro chamava de “prazer em movimento” que, como todo prazer, permanece com certeza um bem, mas que, porém, fica ainda habitado pela falta que o movimenta e, de uma certa forma, o corrompe ou o escurece. O faminto nunca é um bom “gourmet”, nem o amante ávido demais o melhor dos amantes…Mas mesmo nesse caso, porém, o encontro do prazer e da carência permanece uma conjunção dos contrários: a fome (enquanto sofrimento) e a alimentação(enquanto prazer) podem evidentemente existir simultaneamente, no entanto radicalmente antagônicas, pois uma abolirá a outra: o prazer, além de nem sempre precisar da carência, só floresce apagando-a.
Todo prazer sendo um bem, todo sofrimento um mal, eles só convivem se opondo. Mas será que este prazer não pré-supõe aquilo mesmo que está suprimindo, será que a abolição da carência não estaria abolindo, nessa exata medida, o prazer mesmo? Admitir isso seria esquecer-se da existência, além do “prazer em movimento”, de um “prazer em repouso”, constitutivo este do bem viver e do bem estar e que, longe de preencher uma carência, surge mesmo quando nada nos faz falta. É o que chamamos de “plenitude”: não ter fome, não ter sede, não sofrer, não ter medo, não lamentar…As formulações são negativas(a linguagem reflete a absoluta primazia existencial do sofrimento…), no entanto a realidade é totalmente positiva, seria até a única positividade…O “prazer em repouso” é o prazer constitutivo de viver, é a vida mesmo como prazer…
O exclusivo culto do “prazer em movimento” (aquele desejo, segundo Aristóteles) predomina no ser humano, hoje em dia talvez mais do que nunca. Mas é ele, como já acrescentamos, o que mais nos separa da felicidade no ímpeto mesmo visando busca-la. Se a felicidade for possível (e Epicuro nos diz mais: que ela existe, que ele mesmo a viveu, no que todos os sábios concordam), ela pré-supõe uma conversão do desejo que chama-se “sabedoria”: desejar não o que nos faz falta(caminho das religiões e da infelicidade…), nem mesmo o que já temos (na medida em podemos perde-lo), nem mesmo o que somos (pois nada somos …), mas o que vivemos, conhecemos e fazemos. Eis o ponto essencial, confluência das duas grandes sabedorias do Ocidente, a epicurista e a estóica, que o Oriente, da maneira dele, confirma também. Trata-se de desejar o real – de ama-lo, se possível for, de aceita-lo senão – tal como ele é, em vez de sempre recusa-lo para querer o irreal. A felicidade é simples como o pão de cada dia, eis porque é tão difícil : é apenas um grande “SIM” ao mundo e á vida, enquanto nosso primeiro movimento, devido ao medo, é de dizer ou de colocar limitações…
Loucura e tristeza…A sabedoria, em todas as línguas, prega exatamente o contrário, o que parece bem pouco para fazer a felicidade desabrochar…Seria esquecer a AÇÃO, sem a qual na verdade a felicidade nada seria. Pois a felicidade não é um estado ou uma disposição da existência; não é tampouco algo que poderíamos possuir, achar, alcançar, e é exatamente porque, num certo sentido, não há felicidade. Ela não pertence à ordem do “ter”; não é uma coisa, nem uma ontologia, nem um estado: é um ATO.
Ser feliz não é nem ter nem ser: é FAZER. O “prazer em repouso” nada têm do prazer passivo (da mesma forma que o ato sem movimento de Aristóteles ou o não-agir dos Orientais não significam a inação), ele é o ato mesmo de gozar e de existir (o prazer de agir e de ser), enfim liberado da carência e da recusa que o perseguem em quase todos nós e que, ao adia-lo sempre, o proíbem de fato. Trata-se, claro, de um fato que só vale por si mesmo, e não pelos frutos que traria. Aja, então, não para colher, mas pelo prazer da ação; viva, não pela felicidade, mas para viver. Eis na verdade a única felicidade: a no ato, ou seja, o ato mesmo como felicidade.
Somente então o prazer é PURO, como dizem os epicuristas, ou pleno, ou simples, antes de mais nada na medida em que purificado da angústia e da carência que o afastam dele mesmo.Grande estava no entanto nossa raiva ao pressentir que o “NADA” não deixa de nos anteceder…É o que chamam de, mortal veneno, pois através dele a alegria encontra-se adiada e a vida perdida a esperar. A felicidade começa no exato momento em que nada mais esperamos… »
« Séculos atrás, numa pequena cidade do norte da Itália, uma menina de treze anos avistou do balcão um garoto apenas um ano mais velho e proferiu essa frase ao mesmo tempo maravilhosa e imbecil: “Se casado tiver, uma mortalha será meu véu de noiva…”. Eis o mérito da questão, pois desde que me entendo no mundo, tive com a paixão uma relação das mais complicadas, um lado meu atraído (o que é dizer pouco…) por essa vertente “germânica” dela, total, irredutível, irracional, absoluta, mística na verdade (perder-se, dissipar-se, abolir-se no outro até que o mundo mesmo desabe e se perca), o outro lado, ninado pelos estóicos como pelos epicuristas e pelo Oriente, vislumbrando-na como perigo, mortal veneno, pois só ela consegue, se não contida, nos afastar da sabedoria, da felicidade e dessa paz de dentro que tanto prezo…
Se o desejo quase sempre é carência, isto ocorre pela temporalidade dele; o desejo só é carência quando torna-se esperança. AGIR, é satisfazer as exigências de um desejo que não é falta, mas, no ato mesmo, uma potência – o que não proíbe de maneira alguma que o prazer acabe sendo encontrado…O que Platão diz do desejo (desejamos o que nos falta), seria verdade, não do desejo (como potência de gozar), mas do desejo (como gozo potencial) – não do desejo, mas sim da esperança!
Eis porque a felicidade está falhada; não por causa do desejo (que ela, de fato, está pré-supondo), mas POR CAUSA DA ESPERANÇA. No Ocidente, ninguém percebeu isso melhor do que os estóicos. A esperança é uma PAIXÃO ou seja, na sua linguagem, um movimento despropositado da alma que afasta-se da natureza. O sábio não pode ressenti-la: ele vive no presente e nada lhe faz falta. Desprovido de desejo? De modo algum: mas o desejo dele só diz respeito ao real e ao presente (que não é um instante, mas uma duração), seja para alegrar-se mesmo assim, quando não está em seu poder satisfazê-lo, seja para cumpri-lo, quando está. Este último desejo (de um bem presente que depende de mim) foi chamado pelos estóicos de VONTADE ou seja, a potência de agir. Na medida em que o sábio quer tudo que está acontecendo, tudo só acontece do jeito que quer; está feliz, sem jamais espera-lo (esperar o que, aliás, pois já afortunado?) Nada mais vão do que esperar a virtude (pois ela depende apenas de nos), nada mais triste do que esperar a felicidade (pois isso quer dizer que não a temos…); felicidade e virtude, em vez de contraporem-se, convergem, confluem; são elas as marcas da vitória da vontade sobre a esperança, e é nessa exata medida também que elas são liberdade. O sábio faz tudo que quiser pois ele quer (e quer apenas) tudo o que faz: “Não esperar, nada fugir, mas contentar-se da ação presente…”( Marco Aurélio)
Em poucas palavras, a felicidade absoluta, ilusória e impossível, é talvez o principal obstáculo que nos separa da felicidade real, sempre relativa, e que sempre carrega uma parte de luto e renúncia.
Porém, o que de costume nos alegra – para dizer a verdade, apenas no imaginário e no devaneio na maior parte dos casos – é a idéia de possuir o outro (nesse caso não é ele que amamos, mas sua posse) ou de ser amado por ele (nesse outro, também não é ele que amamos, mas seu amor); é o que chama-se de paixão, sempre egoísta, sempre narcisista, sempre prometida ao fracasso…Não podemos possuir ninguém, nem jamais sermos amados como desejaríamos, é talvez a única decepção a qual ninguém chega a habituar-se ou conformar-se…
O amor, o verdadeiro amor (que é amor não de si, mas sim do outro) é sempre generoso; nada lhe faz falta (pois é ele desejo não do que não é, mas do que é), nada pede (pois nada lhe faz falta), nada espera também .
“Estar apaixonado é um estado » – dizia Denis de Rougemont – ”amar, um ato », e apenas os atos dependem de nos…Sem a todo custo recusar a paixão, é então nesse ato de amor (não o amor-paixão, mas o amor-ação) que devemos nos concentrar. Não há “EROS/amor de si” totalmente feliz, é a nossa parte de loucura, não há “PHILIA, AGAPÈ/amor do outro” infeliz, é a nossa parte de sabedoria “
« Por mais longe que consiga mergulhar na memória, fui feliz: na incomensurável infância, no encarnado de uma salubre revolta, na poesia dos números, no verde da Irlanda e no ocre da Toscana, nas iluminações e nas ginopédias, na obra que deixa o tempo passar e olvidar-se, nos subtraindo da realidade só para entregar-nos sua mais plena existência, nos reflexos da sombra numa pele acobreada, na desordem frenética e exata dos corpos, no sussurro das línguas
da minha Babel de dentro, nas fugas e nos langores, no comprimento das regras que para mim mesmo tracei, nos êxtases a que nunca me recusei, na minha inesgotável liberdade de intruso, na multiplicidade das trilhas e na mansidão dos refúgios…
Aconteceu-me estar triste, desesperado: jamais infeliz.
Pois a tristeza é muda, respiração sutil, comprimento e música, enquanto o desespero, compacto e transitório, nada mais significa do que, estrita e etimologicamente, « ausência de esperança ». Ora a felicidade não é para mim nem esperança nem epifania, ela não é revelação, nem revolução, nem redenção.
Lá de onde surge, livre, desprendida de todo vínculo, ela zomba da lei, dos logros da troca, do peso da produção. A sedução a funda, a derivação nos mares do jogo e da memória a amplifica, o campo da dispersão é seu alcance e sua vitória.
Como a sedução, a felicidade nos deixa pegar pelo avesso, de soslaio, de uma bem mais sutil e irônica maneira que a estratégia frontal da critica e da análise, o problema dos poderes e das leis do intercâmbio, acolhendo os signos na sua atração sedutora e não no seu contraste e oposição.
Assim do Bem e do Mal, do Verdadeiro e do Falso, de todas as « grandes » distinções que servem para decifrar o mundo, de todos os termos cuidadosamente esquartejados, desatados ao custo de uma louca energia e que a sedução felizmente reúne no auge da sua intensidade e plenitude.
Pelo próprio jogo da sedução, a felicidade resta insolúvel e indecifrável, desafio à ordem do senso unívoco e à clausura do real, desafio à ordem da verdaderevelada e do conhecimento endeusado.
Lugar de vertigem: não de desejo, de vertigem, não de aniquilamento nem de alienação, mas de eclipse e de cintilação do ser.
Vertigem repentinamente contagiosa, que tramita pelo esperto gozo dos seres e das coisas de manterem-se secretas – enquanto as verdades unívocas passam pela obscena pulsão de sempre e em todo lugar serem reveladas…
Na felicidade, tudo é entrada, parada, o que nos deixa jogar. TUDO, ou seja, o que há de ser seduzido, como Deus, como a lei, como a verdade. Os seres e as coisas vislumbram-se erguidos, retos como a luz num espaço ortogonal; mas todos tem uma íntima curvatura, que a felicidade ajuda seguir, acentuando-a sutilmente até que o peso do senso desabe na sua móvel transparência…
É dela a hora de tudo reconstruirmos, seja apagando, seja decifrando, transformando os estigmas em pontos de partida, como numa nova primeira manhã do mundo.
A felicidade não vai ao campo, ao trabalho, à igreja, ela vai andando. Tem com a sedução o parentesco de saber escolher o que ao longo do caminho vem surgindo e é o molde das trilhas que a modela tal como é…
Tudo se move sem fugir nem confluir, tal o navio que, não afastando-me de pátria nenhuma, não me aproxima de nenhum naufrágio.
Não há assinação: nem agora nem mais tarde, nem aqui nem lá, mas onde e inexplicavelmente ela surge.
Só se fala nela no presente: a duração é a sua substância, nunca letra morta ou previsão.
É intacta: falar dela é ao mesmo tempo convocar e desistir da memória e da esperança, da colheita das lembranças e do traçado das plantas, perspectiva cavaleira deixando vocábulos e musicas para trás e reencontrando-os no frêmito dos plátanos dourados do outono…
O espaço da felicidade não se divide, não se baliza, não se cadastra. Não há sinais, nem faixas sagradas, nem ponto fixo, nem periferia, nem diferenças de profundeza ou intensidade. Não é um território, está lá, no fundo, porém não como se fosse o ponto final; não chega-se a ela como ao termo da viagem, não é tampouco o pais do além, a terra em frente, que só precisaria da travessia…
Espaço paralelo, escondido: quando o mais longo dos périplos, por quase nunca acabar, faz o viajante esquecer-se dele e até de quem ele é, o faz desembocar na trilha da felicidade.
Está ela nas encruzilhadas, nas portas das casas, sombra erguida nos pés das paredes…Está nas margens e nas falhas, no sim e no não, no comprimento como no desapego, na fraqueza de recolher, no que circunda e rompe, nas paradas e nos âmbitos, na presença e no recuo, no dizer e na receptação, na memória das fontes, no fio retido, no pilar cortado, nas queimaduras e nas cortiças, nessa paz sem contornos onde ninguém caminha como numa terra estranha…
Silêncio do meu consangüíneo, palavras sem logro nem limites, tentando arrancar dela, disseminado no flanco da corrida, o soberano instante que nos ratifica:
« Rosa…o pura contradição, alegria de não ser de ninguém o
sono debaixo de tantas pálpebras… » (Rilke) »
(São Luis, 1999)
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